- Mãos à obra! - Antes da aurora, encontremo-nos todos no bosque. Antes da aurora, encontremo-nos todos no bosque. Eu juro que fiquei repetindo isso e somente isso em minha mente, numa tentativa desesperada de transmitir pra ele a última parte da fala. Por tudo que havia de mais sagrado, Dylan tinha que ter gravado aquilo, não importava quão oca sua cabecinha fosse. Mas não.
Eu avisara à Senhora Jesse que colocá-lo como Oberon seria pedir demais de seu talento dramático. A quem eu queria enganar? Aquela velha não enxergaria o próprio Shakespeare se ele estivesse vivo em sua frente, o que era obviamente perceptível pelo fato de ter me escolhido como Helena, e não Hipólita. Como se Louise Williams realmente soubesse atuar.
Tudo bem, eu pensei, afinal boas atrizes de verdade sabem fazer um papel brilhar, seja ele o principal ou não. Desde que tudo saísse perfeito e eu impressionasse os professores da Universidade de Londres, estaria tudo bem. Eu ganharia sem problema algum a vaga para o curso de verão. Quis tentar ter esperança e ser positiva, como a Doutora Christin sempre dizia que eu devo fazer.
Só que o mundo conspira contra mim. Isso desde que eu nasci, é claro. Não devia sequer ter me animado quando a Sra. Jesse avisou que concorreríamos a uma vaga. Como se mais alguém ali sonhasse em atuar desde os três anos e fosse idiota feito eu para estar tentando desesperadamente entrar pro curso de verão. Alguma tragédia estava iminentemente planejada, eu devia ter imaginado.
Então, não adiantaria pedir a Deus, à sorte, ou usar algum daqueles métodos de livros de auto-ajuda, Dylan McCallister não ia acabar sua fala. Ele era mesmo um panaca. Pelo menos James sabia disso. Se seguíssemos o script, e Oberon seguisse suas falas, agora ele, e Titânia e a comitiva poderiam sair de cena, para a fala final de Puck. James também sabia disso, mas ignorou o fato para poder acabar logo com aquela tortura de ver o loiro de nariz de batata do Dylan fazendo caretas e tentando lembrar as últimas dez palavras. Ele deu alguns passos decididos, dispersando a suposta concentração de Dylan de seu próprio raciocínio, e parou no meio do palco, encarando a platéia. Se ele errasse uma vírgula, eu teria um infarto, é claro.
- Caros espectadores! - começou, com um sorriso. Seu tom de voz era bom, alto, e deixava algo no ar. Continue assim, J, continue assim. - Espero que não tenhamos lhes causado nenhum enfado. Se por acaso não acreditarem em tudo o que se viu nesta encenação, pensem que estiveram a sonhar e que tudo não passou de um sonho estranho... - Ele arregalou os olhos exatamente como a Sra. Jesse dissera para fazer. Desejei mesmo que aquilo fosse um sonho e nossa peça não tivesse sido arruinada por Dylan e seu patético surto de amnésia. - De um sonho que apesar dos desencontros termina cheio de felicidade... de um sonho... - Olhou para cima, encarando o cenário estrelado do palco. Parecia perdido, sonhador. Genial. Criaria um fã-clube para James, tinha decidido. - De uma noite de verão!
As cortinas se fecharam. Aplausos! E então eu pude respirar. Finalmente. Corri pro palco, empurrada pelo turbilhão de pessoas do elenco naquela típica animação de fim de espetáculo. Não era o máximo? Tinha sido tão incrivelmente perfeito, nosso trabalho duro tinha valido a pena. Eu me orgulhava tanto de todos e das horas extras de ensaio que a gente tinha gasto nos intervalos. Tudo recompensado pela platéia satisfeita. Demos as mãos e fizemos uma reverência quando a cortina se abriu novamente, e então o grupo se dispersou.
Louise e Eliza me acompanharam até os bastidores, porque tínhamos que pegar nossos estojos de maquiagem e trocar de roupa. O burburinho que tomava conta do teatro do colégio era o som mais contagiante que eu já ouvira. Estava nas nuvens ou chegando perto.
- E, Lou, sua cena com o Henrick foi... indescritível, não fariam melhor. - sorri para ela, e com um aceno de cabeça me virei para a porta do meu camarim. Elas sabiam que não iria para a confraternização que fariam na casa de Eliza, porque tinha combinado de sair com a TC. Aliás, estava louca para perguntar para as garotas o que elas tinham achado da minha performance. Afinal, eu tinha furado com uns cinco ensaios por causa da peça, então acho que elas esperavam que tivesse valido a pena. Ainda que eu ache que Vic só deva ter dado atenção ao vestuário do Oliver, de qualquer forma.
Girei a maçaneta ainda olhando para as garotas, que continuavam no corredor para alcançarem seu próprio camarim. Era tão incrível ter o meu camarim, só meu, em que ninguém entraria a não ser que... A não ser que entrassem.
QUEM ERAM AQUELES DOIS CORPOS NOJENTOS EM CIMA DA MINHA BANCADA SE COMENDO?
Fiquei estática. E ali, no meu camarim, estava um loiro aguado magricelo e baixinho agarrando uma ruiva com cara de baiacu azedo. Alguém, por favor, me acorda do pesadelo ou avisa que abriram o manicômio? O infeliz ainda se dirigiu a minha pessoa. Queria tanto que Mickey estivesse ali naquele momento. Ele quebraria a cara daquele depravado arrombador de camarins e ruivas-baiacus.
- Hm, Vallery, né? - me ofereceu a mão. Como se eu fosse pegar naquele antro que devia ter passado por lugares que eu nem gosto de imaginar na ruiva. Não devia ter feito aquilo, não devia.
- Arrã, e você é quem? O candidato a novo astro da produção pornô da escola? - Soltei uma lufada de ar e quis enfiar o joelho bem nos sacos dele. Ah, como eu quis. Mas não devia ter esperado reação, ele era loiro afinal. Meio burro, coitado. Ficou lá parado me olhando, de certo tentando arrumar a obra.
- Se você puder desculp... - A voz fraca dele começou, foi quase engraçado. Eu riria se não quisesse assassiná-lo.
- Vocês podem sair, agora. A audição é lá na puta que pariu os dois. - Passei pelo garoto e fui à direção da bancada, ia simplesmente pegar o estojo e as roupas e sair. Eu me trocaria num arbusto que fosse, desde que pudesse me afastar daquela cena deplorável. Só que a baiacu não se moveu; também, com aquela cara de peixe morto, talvez estivesse morta. Vadia. Eu parei a, sei lá, um metro e meio dela. Tinha medo de me aproximar muito e pegar sífilis, cara.
- Eu disse pra saírem, ouviu? - repeti, tentando parecer calma. Eu sou atriz, mas não sou a super-mulher. Ela arqueou a sobrancelha, toda cheia de si. Ah, eu mereço.
- A gente paga a escola tanto quanto você, pirralha. A gente tem o mesmo direito de ficar onde quiser. - E então ela me olhou, achando que ia me assustar com aquela cara feia dela. Quer dizer, eu já me olhei no espelho e sei que não sou Keira Knightley, só que pelo menos não nasci do avesso.
- Vocês teriam o direito de ficar aqui se soubessem fazer alguma coisa artisticamente aproveitável. E sexo não conta. - Dei meu sorriso cínico pra ela e cruzei os braços, esperando-a se mover. Peixe morto devia se mover, se não quisesse virar sushi.
Aí a baranga riu. Riu assim, na maior cara de pau de mim. Meu deus, que projeto de gentalha era aquele?
- Pra constar, aposto que qualquer uma das minhas apresentações de bateria superam sua tentativa de encenação de Barney. – Ela queria apanhar? Devia querer muito, sinceramente. Devia ter pedido pra sair, cadete. CACETE! Eu ia descer o cacete nela.
- Não que alguém da sua laia precise saber, mas eu tenho uma banda e componho. Além de saber interpretar Shakespeare e declamar a cena completa da morte de Romeu e Julieta. - rebati, dando um passo adiante. Eu falhava em umas duas falas, mas quem liga? Ela não ia me pedir pra declamar Romeu e Julieta. - E já que não saiu por bem, vai sair por mal. - Então liberei a adrenalina. Ter irmão jogador de futebol e super protetor te ensina a dar bons socos de direita e ter um gancho de esquerda legal. E uma mira boa. Por isso eu impulsionei meu delicado punho adornado pelo azul-céu do vestido de Helena na direção do queixo meio torto da baiacu. Já sentia a pele sem brilho dela batendo nos meus ossos quando o ar me prendeu. Não, uma mão prendeu meu braço, mas que diabos?
- Certo, certo, que tal um jantar? - Eu ouvi uma voz distante falar perto do meu ouvido. Quem? Ah, ah, o loiro aguado. Argh, estragou um soco perfeito, baixote. Virei-me para ele meio atordoada. Que jantar?
- Do que voc... - Olhos azuis. Azulzinhos coladinhos nos meus castanhos sem graça. Os olhos azuis dele estavam perto e me encaravam de um jeito que me deixou sem rumo. Somente agora eu percebera que ele era loiro e ligara isso ao fato de eu ter uma queda colossal por loiros. Isso tudo ligado ao fato de ele ser forte e estar me segurando e estar perigosamente perto de mim. OMG. Queria beijá-lo.
- Amanhã. Janta comigo pra compensar a cena pornô? - Ele disse tudo de uma vez, meio desajeitado. Mas foi lindo. Tudo lindo. E o cheiro dele era bom. Foi tão romântico o jeito que ele disse, não foi? Foi. Romântico? No que eu estava pensando? E a peixe morta? Espera, espera. Pisquei pra ver se acordava da hipnose dos olhos dele. Meio que funcionou mais ou menos.
- Acho que a sua amiguinha da bateria não vai gostar. - sibilei. Aí lembrei que estava morrendo de raiva, é. Puxei meu braço e me afastei dele. Distância do loiro delícia é sempre bom.
- A Sam não vai ligar. - Ele pareceu falar sério. Pensando bem, se ele fosse pagar estava tudo ótimo. E eu ainda esfregaria na cara da baiacu que tinha saído com o ator pornô particular dela. Voltei meu corpo na direção da bancada e ela nem estava mais lá. Ótimo. Abri meu estojo de maquiagem e tirei um lápis de olho preto mal apontado de lá de dentro. Suspirando, como se aquilo fosse uma tarefa árdua, peguei a mão esquerda do loiro delícia. Escrevi meu endereço na letra mais legível que pude. Guardei o lápis no estojo e peguei minha mochila preta, jogando-a nos ombros.
- Às oito. - disse, andando em direção à porta, sem me importar com o que ele responderia. Parei no vão e olhei para ele pela última vez. Claro, sem encarar o oceano azul dos olhos. - E eu não faço pornô, cara. - Pisquei, irônica. A última coisa que ouvi antes de ser abraçada por quatro crushers maravilhadas foi um "É Matt. Madden, Matthew Madden."